CAMELINO PARVO

Crônica

Os ostracistas
 Em fins de agosto do ano passado, estava eu exercendo uma função pública em um dos chamados cargos de confiança e repentinamente me vi transferido para o Departamento de Ostracismo. Passei a exercer um cargo de desconfiança. Toda administração que se preze, especialmente no caso das públicas, tem o seu Departamento de Ostracismo. Em alguns lugares o Departamento de Ostracismo é conhecido por geladeira. Por razões estratégicas – às vezes óbvias, às vezes nem tanto – normalmente esses órgãos são secretos. São constituídos por aqueles profissionais, geralmente qualificados, que, por um ou outro motivo, entraram em rota de colisão com o (ou os) mandachuva(s) de plantão, o(s) qual(is), também por um ou outro motivo, não quer(em) perder um ou outro apoio político – o que poderia ocorrer se optasse(m) pela transferência direta dos ostracistas para o olho da rua.
O trabalho dos ostracistas é penoso. Só mesmo outro ostracista pode avaliar a penosidade dessa função. No meu caso, tenho a companhia de outro colega. Nós nos ajudamos mutuamente. Ele fica numa sala contígua à minha. Nosso Departamento não tem chefia. Ele é o meu contíguo e eu sou o contíguo dele. A solidariedade entre os ostracistas – embora nem sempre alcançada – é essencial para o bom andamento do serviço. No nosso caso, o serviço anda bem.
Diferentemente do que possa parecer aos leigos, o ostracismo nada tem a ver com ostras. Pelo menos, não com as autênticas, talvez alguma coisa com as figuradas. No ostracismo, as ostras são outras. Mais duras, muito mais duras. Ostracista que se preze não engole sapos, engole ostras. Com carapaça e tudo.
Estou seriamente pensando em criar o Sindicato Nacional dos Ostracistas. Sinaostra, que todo sindicato que se preze tem o seu nome de fantasia. Como a função de ostracista é restrita a certos profissionais e o numero deles não é muito significativo em cada administração (pelo menos, imagino isso – e, aliás, isso depende de cada administração), a idéia é fundar, de início, o sindicato com base territorial nacional. Na sequência poderia haver uma divisão, ou mesmo uma subdivisão do sindicato. Seria então criada a Fenaostra – A Federação Nacional dos Ostracistas, congregando todos os sindicatos da categoria.
Como todo sindicato efetivamente funcional, o Sinaostra teria o seu rol de reivindicações, a ser negociado com o sindicato patronal. Ainda não sei quem seria esse sindicato patronal ou quem o representaria, mas isso não vem ao caso. O importante é ter as reivindicações e divulgá-las. Usar a mídia o mais possível, fazer passeatas e greves, acusar o governo de insensível aos anseios da categoria, e assim por diante.
O rol de reivindicações teria alguns itens óbvios. O reajuste salarial, por exemplo, num percentual tal que cobrisse todos os anos passados sem o devido reajuste com base nos índices oficiais ou extraoficiais da inflação. Se uns tiveram reajuste nos anos passados e outros não, isso não importa. Aliás, até é bom que seja assim. Calcularemos o reajuste com base naqueles que não tiveram reajuste algum. Ganho real é outro item importante. Se a renda de todo o conjunto da sociedade está aumentando, a dos ostracistas não pode ser ignorada, sob pena de marginalização (desculpem a redundância) da categoria. Auxílio penosidade também precisa ser considerado. Os que duvidam das dificuldades dessa nobre função deveriam experimentar. Engolir ostras – com casca e tudo – é penoso pacas. Enfim, a pauta de reivindicações seria ainda completada numa série de assembléias estaduais a serem convocadas oportunamente e aprovada em discussão final numa assembléia nacional. Outros itens entrariam, certamente. Redução da jornada de trabalho, férias de 60 dias – isonomia com os parlamentares, nada mais justo! – e pagamento de horas extras com duzentos por cento de acréscimo, seriam pontos fundamentais que jamais poderiam deixar de integrar uma pauta de reivindicações digna do nome. Ah, quase ia esquecendo: não podemos dispensar o recebimento da nossa fatia do imposto sindical, claro!
Desde já coloco o meu nome à disposição para liderar o Sinaostra – e também a Fenaostra, assim que forem criados. Será um sacrifício ainda mais penoso que o próprio exercício da função, mas em nome dos supremos ideais da categoria eu sou capaz desse gesto de desprendimento, sujeitando-me a viajar pelo Brasil afora à custa da novel – e nobre – categoria profissional, acompanhado dos indispensáveis assessores e secretários (secretária, de preferência).
É uma pena que hoje eu já tenha sido transferido para o Departamento do Pé-na-Bunda. Mas não tem problema. Como ostracista aposentado também tenho o direito constitucionalmente garantido de continuar pertencendo à categoria. Aliás, as transferências dos Departamentos de Ostracismo para os Departamentos do Pé-na-Bunda precisam também ser discutidos em assembléia nacional. Vamos lá, a luta continua, companheiros
Imagens: Obvious (http://obviousmag.org) e Pitoresco (http://www.pitoresco.com.br)

Crônica
Nos anos de plum-bum
Eram cinco ministros militares: o do Exército, o da Marinha e o da Aeronáutica. Mais o Ministro da Casa Militar e o Ministro do Estado Maior das Forças Armadas. Eventualmente, o Ministro da Casa Civil em certa época também foi um militar, o Golbery, a iminência parda. E mais um ou outro por aí, como, exemplificando, o Cesar Cals no Ministério dos Transportes, o Nei Braga no da Educação, etc, etc. Civil em cargo militar, nem pensar, era heresia. Mas militar em cargo civil podia. Não só podia como era preferível. Para militar, civil era sinônimo de imbecil. Rima, pelo menos.
No governo do Jango eu era neófito em política, pouco antes dos vinte anos de idade. Início da década de 60, militava no partido do Presidente, o Partido Trabalhista Brasileiro, PTB, partido do Brizola, fundado por Getúlio Vargas. Trabalhava em jornal: repórter, redator. Tinha começado uns seis meses antes como revisor gráfico. O patrão descobriu minha facilidade com as letras quando o pessoal da oficina veio se queixar de mim, acusando-me de alterar os textos mandados pela redação. Como eu lia tudo – por força do ofício – e redator também erra, eu corrigia aquilo que achava errado. Era o tempo das linotipos. E os textos que vinham para a revisão vinham linotipados, naturalmente. Os linotipistas ficavam uma arara (uma arara cada um, que o computador já está me corrigindo!) “Tá certo, vocês têm razão, mas o texto tá errado. Tá certo mas tá errado”. Como explicar para os linos? Foram ao chefe. Mostraram os originais, a matéria linotipada e as minhas correções. O chefe me chamou:
- Foi você que alterou esses textos?
- Foi, chefe.
- Quero que escreva um texto pra mim. – Chamou o chefe da reportagem:
- Você cobriu aquele acidente de carro hoje de manhã, Calegari?
- Sim, chefe, fui com o Carazzai. – Carazzai era fotógrafo e “chefe” era o tratamento generalizado em referência ao patrão, proprietário e diretor do jornal (hoje seria chamado de CEO).
- Então passe os dados e as fotos para o Otto. – E, dirigindo-se a mim:
- Quero um texto-legenda para a primeira página. – Na época, acidente de carro dava manchete de primeira página em jornal do interior, mesmo sem vítimas fatais. Tinha pouquíssimos automóveis nas ruas.
Com os dados do Calegari escrevi o texto, escolhi a foto, levei para o chefe. Ele leu e perguntou:
- Você também escreve textos comerciais?
- Nunca escrevi, mas posso tentar.
- Então escreva um anuncio procurando outro revisor. Você passa para a redação.
Por que abri essa matéria falando do golpe militar? O jornal inteiro, do chefe ao ajudante de oficina, era tudo PTB. Todos roxos, convictos.
Veio o golpe, apelidado de revolução. O chefe foi em cana, o chefe da redação também, o Callegari se mandou – até hoje não sei para onde –, o velho Luiz Gouvêa, patriarca dos redatores, idem, idem. Sobrou até para o Carazzai: voltou para Curitiba, enfurnou-se nalgum estúdio fotográfico. O jornal só não fechou porque era o mais tradicional da cidade, podia pegar mal. Então fizeram um acordo com o chefe: ele vendeu o jornal, para todos os efeitos. Assumiu uma turma da direitona.
Podem me chamar de frouxo, de bundão, mas eu não tinha opção. A família dependia da merreca que eu ganhava. Aguentei o tranco, fiquei no jornal. Passou algum tempo e, na primeira oportunidade que me deram para escolher, preferi ficar só com o setor de esportes. Já tinha cansado de tirar fotografia de malandro em pose de vestal nos palanques da ditadura. As fotos até que não eram o pior. Pior mesmo era ter que descrever o heroísmo de tais personagens. E, ainda por cima, promover o “ouro para o bem do Brasil”, a primeira campanha pilantrópica da “revolução”, em que pais de família sem dinheiro para comprar um pé de alface tiraram as alianças dos dedos para “ajudar o Brasil” (quem viveu, lembra – mas aí já é outra história!)
Fiquei nos esportes trabalhando 363 dias por ano. Folga só no dia do Natal e na Sexta-feira Santa. Fiz de tudo para melhorar o cascalho: expediente extra, anúncios, viagens, reportagem, redação, fotografia, edição de suplemento... até vendi jornal na rua.
Quando surgiu a oportunidade, prestei concurso para importante empresa paraestatal. Passei! Pirulitei. Adeus jornal, adeus jornalismo. Adeus política também, embora desta eu já tivesse me despedido antes. Fiquei trinta anos hibernando politicamente. O tempo da “revolução” e mais um pouco.
Reminiscências do tempo do Jango: o país, na época, não era nenhuma Suécia, tinha suas mazelas, muitas delas, mas todas elas somadas certamente não representariam mais do que um arbusto na selva de malandragens e falcatruas que grassam no Brasil de hoje. Tempos eram em que não havia Lei de Licitações, Lei de Responsabilidade Fiscal, não tinha ECA nem nada dessas baboseiras que burocrata inventa para justificar o cargo e que servem menos de defesa contra as maracutaias e mais de biombo para ocultá-las. Não se viam tantas falcatruas em obras públicas, não havia mensalão, a renda dos deputados não era imoral e político não viajava em avião de empreiteiro. Hospitais não vazavam pacientes pelo ladrão, aluno não xingava nem batia em professor, polícia não matava tanta gente na rua e vereador não tinha salário. Crianças saiam do curso primário (quatro anos de estudo) sabendo ler, escrever e fazer contas. Jornalistas terminavam o curso superior com ideias na cabeça e talento na escrita e a OAB não submetia os advogados a um exame porque eles aprendiam o que precisavam nas aulas da faculdade. Talvez por isso tudo veio o golpe. Tem gente que não suporta viver num país sem pilantragem.


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Crônica
Na era da internet
Já escrevi que antigamente, se alguém cogitasse ter um computador em casa seria tomado por cientista ou por maluco de carteirinha. Doido varrido, no mais das hipóteses. Onde já se viu? Dizer que poderíamos – mesmo que num futuro remoto – acompanhar as previsões do tempo, comunicar-se com outras pessoas, encontrar endereços ou mesmo fazer compras, tudo isso pelo computador, seria tomado como grave heresia.
Lá pelos fins da década de 80 e começo da de 90 (do século passado, que fique bem claro!), tomei conhecimento da internet. Foi uma noção meio superficial, mas acabei formando uma idéia mais ou menos razoável a respeito da coisa. Comentei o assunto com uma colega advogada. Na falta de exemplos mais sugestivos, expliquei:
- É uma tipo de rede de computadores que qualquer pessoa pode acessar, desde que tenha um computador e ele esteja ligado numa espécie de computador-mestre, que é chamado de “servidor”. Se você tem esse acesso, pode divulgar qualquer arquivo seu, um documento, uma tese acadêmica, por exemplo, que ficará arquivado na rede. Qualquer um que também tenha o acesso pode ver o seu documento. E você também poderá ver o que os outros tiverem arquivado na rede...
E ela, de pronto:
- Que coisa mais sem graça...

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Crônica
Um dedinho na seleção
Não sou cronista esportivo, nem pretendo sê-lo (embora em épocas priscas já o tivesse sido). Mas um assunto me chamou a atenção nesta quinta-feira. Mais exatamente, foi uma suspeita, levantada por alguns profissionais da área: a do envolvimento de empresários na escalação da seleção brasileira de futebol que faz amistosos na Europa. A suspeita de que o técnico da seleção tem o rabo preso com um empresário é coisa séria, não só porque afeta um enorme universo de pessoas e de interesses, mas porque – principalmente – fere os brasileiros num de seus mais caros emblemas: o futebol e a sua seleção nacional.
Com efeito, não se pode, em sã consciência, admitir que o interesse particular de empresários nem sempre escrupulosos interfira na seleção brasileira de futebol. Ainda por cima, mexendo diretamente na escalação da equipe, forçando a entrada de um atleta de talento sabidamente inferior apenas para valorizá-lo com vistas a futuras transações milionárias.
Não existe um só ser humano no mundo que esteja isento de vínculos. Podem ser de diversos gêneros: vínculo social, vínculo político, vínculo familiar, vínculo afetivo, etc, etc... Na maioria dos casos, vínculos são frutos de relacionamentos sérios e desinteressados. Mas existe o outro lado da moeda. Quando entra o interesse financeiro na jogada, efeito da famigerada ambição humana, a coisa muda de figura. Vínculo é uma coisa, rabo preso é outra... Rabo preso, expressão popular usada de forma pejorativa, designa um vínculo de compromisso, geralmente escuso.
O mundo do futebol é, sabidamente, um universo milionário. Um universo que atrai interesseiros como atrai moscas certa substância que cheira mal quando revolvida. Não houvesse tanto interesse suspeito nesse universo certamente teríamos uma orientação diferente na Confederação Brasileira de Desportos, uma direção intolerante com técnicos de relações duvidosas. Essa insuspeita direção certamente nomearia um técnico deveras independente, nem que seja ele o Mané dos Anzóis, treinador de algum time da quinta divisão, desde que integro e sem comprometimento escuso. A seleção até poderia perder jogos, mas perderia com dignidade e impondo o respeito que nem sempre consegue exigir. E os brasileiros poderiam voltar a olhar a sua seleção com aquela ponta de orgulho que está sendo jogada pela janela.

Crônica
Na era do computador
Quando criança eu não sabia o que era um computador. Na verdade, ninguém sabia. Ninguém do “comum do povo”, segundo a expressão que se usava. Alguns especialistas e estudiosos, sim. Tinham alguma noção, pelo menos.
A mim sempre pareceu, naqueles tempos, que computador era uma enorme máquina de fazer contas. Complicadíssimas, claro. Coisa de cientistas ou de grandes empresas, para calcular coisas como o tamanho das galáxias, a distâncias entre estrelas e algumas outras do mesmo gênero, como fazer a contabilidade dos bancos, por exemplo.
Naquela época, quando alguém dizia que iria “entrar no computador” a expressão podia ser tomada ao pé da letra.
Jamais passaria pela cabeça de alguém que um belo dia as pessoas viriam a ter computadores em casa. Eu ainda era jovem quando vi um anuncio numa revista que dizia (não “dizia”, estava escrito, claro!) mais ou menos isso: “Se você acha que a sua empresa é muito pequena para ter um computador, é porque ela deve ser pequena mesmo!”
O reclame (era assim que se dizia) me impressionou, mas fiquei imaginando por que uma pequena ou média empresa podia querer um computador. Afinal, computar o quê? Cálculos complexos só iriam interessar a empresas de grande porte, multinacionais, bancos, etc.
Quando fui convidado pela primeira vez para conhecer um computador, só mostraram a impressora e a perfuradora de cartões. Os computadores funcionavam assim, antigamente, com cartões perfurados. A impressora tinha o porte de duas máquinas de lavar roupa, colocadas lado a lado. O computador propriamente dito ficava numa sala grande, sem janelas e com a porta hermeticamente vedada, cujo acesso era terminantemente proibido, a não ser para os técnicos e para o pessoal especialmente treinado. Era uma sala com ar condicionado, temperatura controlada, excepcionalmente asséptica, esterilizada, fiquei pensando que as pessoas que entravam lá teriam que usar máscaras ou algo parecido com escafandros. Uma vez lá dentro seriam impedidas de falar. Evidentemente, nossa entrada não foi autorizada (estávamos num grupo de umas quinze pessoas). Também mostraram o arquivo de “fitas magnéticas e disquetes” com coisas já gravadas. O cicerone se achava a pessoa mais importante do mundo e repetia a toda ora que era um “engenheiro de computação”. Coitados dos pobres mortais que não entendiam nada da nobre atividade computacional!
No fim da visita, o doutor sabetudo foi à impressora, digitou alguns comandos num painel e a máquina começou a matraquear num formulário de folhas contínuas um mosaico de caracteres que reproduziu o rosto de Jesus Cristo. Deu uma cópia para cada um e a exposição por encerrada.
Ficamos todos impressionados, mas continuamos não entendendo bulhufas de computadores.


Crônica
As lições de Fedro
Estou cercado por notícias dando conta do massacre de dezenas de pessoas na Noruega, perpetrado por um terrorista de extrema direita, Anders Behring Breivik, que mistura crendices religiosas, fobia por estrangeiros – especialmente muçulmanos – e mais algumas esquisitices parecidas. Esse noticiário repercute na TV, nos jornais e nas emissoras de rádio, só perdendo em profusão para o caso da morte da cantora maluquete Amy Winehouse. Entre essas duas ocorrências há muita coisa em comum.
Há quase 2.500 anos, o filósofo grego Platão registrou um diálogo chamado Fedro, em que defende a tese segundo a qual todo ser humano tem uma alma – na concepção moderna seria correto chamá-la consciência – que é, por sua vez, constituída por três forças distintas, sendo uma delas racional e as outras duas, irracionais: a irascibilidade e a concupiscência. Para ilustrar essa tese, Platão narra um mito, comparando a alma/consciência a uma carruagem puxada por uma parelha de cavalos, sendo um deles dócil (a irascibilidade, que tem por função principal cuidar do cumprimento das intenções da alma racional) e o outro bravio e rebelde (a concupiscência). Cabe ao cocheiro, que faz o papel da razão, conduzir a carruagem num rumo correto, pois o cavalo bravio tende a levar o veículo para o lado das coisas ruins e das práticas maléficas – como os vícios, as orgias e as perversões –, enquanto o outro (cavalo) se deixa conduzir com tranqüilidade, inclusive ajudando o cocheiro a dominar o seu companheiro arruaceiro quando isso se faz necessário.
Fazendo um paralelo entre o mito de Platão e as estripulias do terrorista Anders Breivik, concluímos que o cavalo bravio da consciência dele acabou arrastando a carruagem para os lados do mal. Seu cocheiro não teve a competência necessária para conduzir o veículo de acordo com as normas estabelecidas pela consciência racional. No caso de Amy Winehouse o problema foi o mesmo.
Conclusão: os dois são (foi, em relação à Amy) malucos de carteirinha. O pior é que tem mais alguns por aí.

Crônica
Ah, memória!

Vira e mexe sou obrigado a usar uma senha para fazer certas coisas: para usar o caixa bancário, para acessar a minha correspondência eletrônica, para ouvir música no computador portátil, para pagar compras feitas pela internet, para usar meus cartões de crédito, para... enfim, para tudo, hoje em dia, usam-se as malfadadas senhas. O pior da história é que, em muitos casos, você não pode inventar a senha, “eles” não deixam. E vão empurrando códigos estrambólicos, de memorização quase impraticável, e ai de você se esquecer... Deviam deixar a senha a critério de cada cidadão, e assim todos criariam um código que poderia ser o mesmo para todos os casos. Seria um código pessoal, assim como a assinatura. A maioria das pessoas tem uma assinatura só e o mesmo critério seria usado para o caso das senhas. Obviamente, quem quisesse, adotaria mais de uma delas, ou uma diferenciada para casos específicos.Enfim, seria um problema de cada um.

Do jeito que é hoje, o uso das senhas torna-se um martírio. Como já escrevi aí em cima, a memorização delas é quase impraticável – quando não o é de todo. Anotar as senhas num lugar qualquer implica em riscos, o que não é recomendável. Mas é a saída, em todo caso. Foi o que fiz recentemente: anotei todas as senhas num papel e o guardei a sete chaves, longe do alcance de estranhos. E longe do alcance da minha pobre memória também, pois de tão bem guardado o papel, eu mesmo não me lembro mais onde foi deixado. Nem São Longuinho pode me ajudar...
Paciência. Vamos continuar às voltas com as senhas...

Conto:
Marézio e Juvênia
Não nasceu na roça, como se costuma dizer. Nasceu na cidade, numa maternidade. Mas nasceu com um pé na roça. Com um pé não, com os dois. Desde que aprendeu a andar, um ano e dois meses de idade mais ou menos, Juvênia pôs os pés na terra, na grama, no mato, no barro, nas pedras. Desde muito pequenina andava descalça pelo sítio dos pais. Desenvolveu tal robustez e rusticidade nos pés que seria capaz de arrancar toco a bicudaço. Cresceu educada na rígida disciplina eslava, trabalho duro na terra da família, educação na escola pública da colônia com aprendizado supervisionado pelos pais e irmãos, alimentação simples e sadia. E religião: Igreja Católica Ortodoxa, duas horas de missa dos domingos afora outras obrigações suplementares. Herdou o forte sotaque eslavo, embora jamais tivesse falado outra língua na vida a não ser o português.

O nome passou a ser motivo de chacota, desde a escola. Ninguém explicou o porquê da coincidência (ou não seria?) com uma antiga marca de produtos para cabelos. Talvez a mãe tenha achado o nome em algum almanaque, talvez o pai tenha ouvido alguma referência em suas andanças pelos botecos da região, mas enfim... Juvênia cresceu forte e sadia, mais forte que o necessário para uma moça caseira e prendada, casadoira, mas enfim...

Na escola só completou o curso primário, ou ensino fundamental, como queiram, depende da denominação da época. Não foi além por culpa dos pais. Do pai, especialmente, que achava que moça não precisa saber mais do que as obrigações da casa: lavar, coser, cozinhar... e cuidar do marido e dos filhos.

Aos dezenove anos Juvênia casou com Marézio, trinta e dois. Ambos virgens. Marézio nunca teve uma ocupação fixa, definida. Vivia dos rendimentos de uma pequena fortuna que herdou dos pais, rendimentos que gastava com parcimônia. Muita parcimônia.

O casório deu-se um bom tempo depois (e apesar) de um incidente ocorrido quando Marézio foi, pela primeira vez, visitar o sítio dos pais dela. Havia, debaixo de um frondoso abacateiro, um balanço constituído por um assento afixado em duas cordas paralelas na vertical, amarradas a um dos galhos da árvore, este quase na horizontal. Os dois namorados e os velhos estavam conversando, sentados nessa área do pomar, Marézio no balanço estagnado, quando o pai da moça pediu à filha mais nova, Jovana, uns treze anos na ocasião, que trouxesse suco de laranja. Cumprindo a ordem, Jovana foi à cozinha, preparou o suco e o trouxe numa grande bandeja aonde vinha, além da jarra com o líquido, uma certa quantidade de copos vazios. O primeiro a quem se ofereceu o suco foi exatamente Marézio que, envergonhado, não quis aceitar a distinção. Recusou o suco, mas Jovana era insistente. Afastando-se da futura cunhada, recuando com passos à ré, traseiro ainda assentado ao balanço, Marézio só queria livrar-se do embaraço. Jovana avançava em direção a Marézio teimando no oferecimento e o moço, recuando, recuando, até que a ponta dos pés não mais sustentou a situação: de supetão lá veio Marézio com tudo para cima da meninota, levantando-a no ar com as duas pernas, embolando-se ambos juntamente com bandeja, jarra e copos, numa espetacular cambalhota a dois que, se ensaiada, jamais se repetiria a contento. Marézio não pensou duas vezes. Erguendo-se de um salto, saiu às carreiras em direção à bicicleta com que tinha vindo e desapareceu como um corisco pelas sendas rurais até a segurança do seu quarto urbano. O namoro só foi retomado porque Juvênia procurou o infausto rapaz o qual, entretanto, só voltou ao sítio depois de terem estabelecido solenemente o noivado.

Marézio sempre foi um supersticioso. Abominava pessoas com os sobrenomes Dalitbogoff, Strosgradoff e Gerintoboff. Diante da imagem de São Judas Tadeu, que foi visitar no bairro Jabaquara, em São Paulo especialmente para essa finalidade, jurou solenemente que se afastaria de todas as pessoas que tivessem algum desses sobrenomes. Por uma raríssima ironia do destino, nunca cruzou com nenhuma. E continuava abominando, cada vez mais intensamente, os sobrenomes Dalitbogoff, Strosgradoff e Gerintoboff. Outros não, mesmo que sejam terminados em “off”. Marézio também não gostava de ornitorrincos. No mesmo juramento que fez na Igreja de São Judas Tadeu prometeu rezar dez Pais Nossos – em latim – toda vez que um ornitorrinco cruzasse o seu caminho. Por obra e graça divinas também nunca encontrou um ornitorrinco, embora já tivesse visto um exemplar na televisão. Foi exatamente dessa visão televisiva que nasceu a sua aversão por ornitorrincos. De qualquer forma, jamais precisou decorar o Pai Nosso em latim.

Marézio também era distraído. Certa vez foi trabalhar à noite em seu ateliê – que servia ao mesmo tempo de escritório de projetos, biblioteca, depósito de peças usadas e oficina mecânica – quando decidiu preparar um café. Foi à pequena cozinha anexa e pôs água a ferver numa chaleira sobre o fogareiro a gás. Voltou ao trabalho em execução, mas por algum motivo decidiu interrompê-lo e retornou para casa. Só se lembrou do café às duas horas da madrugada quando os bombeiros o acordaram para verificar o estado de seu ateliê/escritório/biblioteca/oficina, àquela altura totalmente destruído pelo fogo. Graças aos bombeiros e a um vizinho que denunciou o fato assim que percebeu a fumaça, as demais construções do quarteirão puderam ser salvas. Todas as atividades de estudo, pesquisa e projetos de Marézio tiveram que ser temporariamente interrompidas.

Marézio gostava de andar de bicicleta. Adorava pedalar pelas redondezas do bairro, havia uma descida mais ou menos forte em que ele se largava na magrela, soltava as mãos do guidom, erguia o traseiro do selim e sentava-se atrás, no bagageiro, ou garupa, cabelos ao vento, pura sensação de liberdade. Mantinha sempre a sua bike em boas condições, caprichava na manutenção e na aparência. Certo domingo decidiu desmontar todo o veículo para uma limpeza e manutenção gerais. Sabem como é, uma graxinha, uma lustradinha. Tirou todos os acessórios e, após cuidar de cada um deles com capricho especial, foi remontando o veículo, peça por peça. Resolveu experimentar a danada ainda seminua, faltando a colocação dos paralamas, da proteção da corrente e do bagageiro/garupa. Tudo funcionando bem, a lubrificação melhorou o desempenho. As ruas do bairro foram vencidas com facilidade, lá veio a tal descida para a liberdade. Soltou as mãos, levantou o traseiro e, esquecido, sentou-se no “bagageiro”. Os populares que assistiram a cena enquanto aguardavam o ônibus no ponto comentaram entre si que nunca haviam visto uma freada naquelas condições e um tombo tão espetacular...

Além de supersticioso e distraído, Marézio ressentia-se de outros problemas. Um deles era a frustração. Por muito tempo esperou alguma manifestação, mas ninguém deu atenção à proposta que encaminhou para vários deputados federais e senadores propondo a apresentação de um projeto de lei tornando obrigatório o porte de guarda-chuva pelos pedestres que circulam em espaços públicos em dias de chuva ou com previsão de sua ocorrência. Essa medida, segundo a exposição de motivos encaminhada junto à proposta, teria o objetivo de proteger a saúde dos cidadãos – a exemplo do uso do cinto de segurança para quem utiliza o transporte motorizado – e sua desobediência ocasionaria a aplicação de multa, duplicada em caso de reincidência. Marézio, ele próprio, nunca dispensou o porte do guarda-chuva. Mesmo em dias de céu aberto e sol escaldante, o precioso instrumento sempre foi sua companhia constante. Também por graça divina, nunca esqueceu o guarda-chuva em nenhum lugar.

Outra frustração de Marézio residia no fato de que nunca recebera nenhuma resposta a um revolucionário projeto para desenvolvimento de um automóvel movido a água, que encaminhara à Caixa Econômica Federal. O pedido solicitava verbas para o desenvolvimento do projeto. Marézio achou uma estupidez o fato de terem perguntado o princípio de funcionamento do automóvel movido a água. Chegou mesmo a ter uma discussão com um engenheiro da Caixa depois que o projeto foi encaminhado para o órgão interno da instituição, para ser analisado. Marézio foi chamado e o engenheiro foi logo disparando:

- O senhor mandou um projeto pedindo verba para desenvolver um projeto de veículo movido a água, mas não detalhou o funcionamento do mesmo. Como pretende obter o financiamento?

- Eu pedi o financiamento para desenvolver o projeto, como o senhor bem observou. Então fica claro que o projeto ainda não foi desenvolvido. Como o projeto não foi desenvolvido, como é que eu vou saber como o carro vai funcionar?

- Mas assim não é possível aprovar o financiamento. As coisas ficam muito vagas, não há nenhuma certeza do sucesso...

- Essa certeza eu tenho! Só preciso de condições de desenvolver o projeto.

- Então o senhor já tem uma idéia, não é mesmo? Não pode por essa idéia no papel?

- Se eu puser a idéia no papel vou acabar elaborando o projeto. Como é uma coisa muito complexa, para elaborar o projeto é preciso tempo, dinheiro... preciso pagar um projetista, comprar material... Afinal, tudo o que preciso para o projeto está relacionado no projeto... quer dizer, no pedido de financiamento.

- Sim, estou vendo aqui. O senhor até juntou fotografias de uma oficina onde o carro seria produzido... não é uma oficina de primeiro mundo, não é mesmo?

- Nós não estamos no primeiro mundo, senhor. Escolhi a forma mais econômica de produzir o carro. Se tivesse optado por uma firma superequipada, com recursos de primeira linha, o custo de produção seria muito maior, não acha? Além disso, a oficina iria produzir apenas um protótipo. Mas esqueça, a oficina pegou fogo e preciso procurar outra...

- A oficina era sua? – O funcionário estava tentando contemporizar.

- Sim, era. Infelizmente. Ainda estão averiguando se foi sabotagem... de qualquer forma, eu não tenho seguro, mas o que há de se fazer? Paciência. Mais do que nunca, agora preciso da verba para desenvolver o projeto...

- Pois vamos analisar. Eu vou preparar um parecer... procurarei ser favorável, mas posso adiantar que vai ser meio difícil... sabe como é, esses projetos precisam ser muito objetivos...

- Sei o que vocês estão querendo. Saber o princípio de funcionamento, não é? Mas, como já disse, não posso adiantar nada, mesmo porque não sei...

- Muito bem, senhor Marézio. Aguarde notícias. Assim que a Caixa tiver uma decisão, ela será comunicada...

Marézio deixou a agência da Caixa Econômica Federal bastante abatido. Estava realmente pessimista. Se algum dia fora realista na vida, esse dia era esse mesmo. Comentando o caso com amigos, reconhecia que, se abrisse o jogo e revelasse o segredo do carro, teria grandes chances de obter o financiamento. Mas não era essa a sua idéia:

- Eles querem saber como vai funcionar o carro, é claro! Mas eu não sou burro. Não vou contar. Eles querem roubar o segredo para vender para algum grupo de tubarões que vai fabricar o automóvel. Saber eu sei, aliás sei muito bem, mas não vou contar de jeito nenhum. Se a Caixa não quiser soltar a grana, vou procurar financiamento em outro lugar. Alguém vai me ajudar, com certeza.

E assim Marézio foi tocando a vida, entre superstições e distrações, esperando por um financiamento que nunca saiu. Por seu lado, Juvênia concluiu que as coisas não iam bem no âmbito familiar quando constatou que passara a achar o primo Felício mais sensual que o próprio marido, embora faltassem a Felício dois dentes incisivos – toda a ala dianteira direita – e este andasse constantemente com o cabelo sujo e desgrenhado e com a barba por fazer e ainda, aos domingos, dedicasse manifesta e ostensiva preferência pelos botequins em detrimento da missa ortodoxa.

Em matéria de preferências, Juvênia enfrentava outra tragédia pessoal: era a dedicação especial que Marézio tinha pelos passeios noturnos de bicicleta e pelos games eletrônicos no computador. Quando não era uma coisa era outra, sempre em prejuízo dos exercícios sexuais pertinentes ao matrimônio. Assim é que, três meses após o casamento, Juvênia conseguia a separação de Marézio. Casaram virgens e se separaram idem.

A selvagem campônia acabou viúva uma semana depois da separação. Marézio morreu eletrocutado, vítima de um raio que atingiu a ponta do seu guarda-chuva quando perambulava pelas ruas debaixo de um forte aguaceiro. Assim, a humanidade ficou privada de mais uma maravilha da tecnologia moderna, eis que o segredo do automóvel movido a água foi inapelavelmente sepultado junto ao cadáver do infeliz Marézio.


Conto:
O advogado e a madrugada
O telefone toca às duas e meia da madrugada:
- Doutor Boris? Por favor, preciso da sua ajuda.
- O que é que foi? Quem é que está falando?
- Aqui é a Lurdes, sou esposa do João Mariano.
- Desculpe, mas não conheço a senhora nem o seu marido. Acho que a senhora errou o número do telefone.
- Não errei. Não é o Doutor Boris que está falando?
- Sim, aqui é o Boris. Quem lhe deu esse número de telefone?
- Foi um amigo seu, um cliente seu.
- Cliente? Faz muito tempo que não tenho clientes. Qual é o nome dele?
- Não sei bem o nome. Ele é amigo do João e disse que é seu amigo também.
- Afinal, o que é que a senhora quer?
- Eu preciso de um favor seu, Doutor Boris. É sobre o meu marido.
- O que é que aconteceu?
- Ele foi preso, Doutor. Ele estava num bar e estava armado, a polícia chegou e prendeu ele.
- E a senhora está procurando um advogado...
- É sim, Doutor Boris. O senhor pode me ajudar?
- A que horas ele foi preso?
- Agora há pouco. Acho que era uma hora da manhã, uma e meia...
- Escute uma coisa, dona... como é mesmo?
- Lurdes, meu nome é Lurdes.
- Pois bem, Dona Lurdes. Em primeiro lugar, faz vários anos que estou aposentado e não exerço mais a advocacia. Em segundo lugar, nunca fiz advocacia criminal e muito menos fui advogado de porta de cadeia...
- Mas, Doutor Boris, eu preciso muito...
- Dona Lurdes, eu poderia lhe fazer um favor, sim, se estivesse disposto a sair de casa a esta hora da madrugada. Se a senhora insistir muito eu talvez vá mesmo...
- Que bom, Doutor Boris...
- Sim, Dona Lurdes, eu poderia ir à delegacia e falar com o delegado ou com quem estivesse de plantão, e pediria que o seu marido ficasse trancafiado pelo menos por uma semana e, de preferência, que levasse uns cascudos todo dia... talvez assim conseguissem baixar o topete dele...
- Mas, Doutor...
- É sim, Dona Lurdes. Quem fica num bar até de madrugada, e armado ainda por cima, está é procurando confusão. Não está de boa fé, não...
- Mas o João...
- Já sei, na sua opinião, ele é um santinho. Pois fique sabendo que a senhora devia agradecer aos céus por ele ter sido preso. Caso contrário, a esta hora, a senhora poderia estar telefonando, não para um advogado, mas sim, para um agente funerário. Ou então, para um advogado mesmo, mas por causa de uma coisa muito mais grave. Então, quer que eu vá para a delegacia?
- Clic. tum, tum, tum...

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